Há muito que eu gosto na arte da tipografia. Umas dessas coisas é a sua filosofia, a sua postura em relação ao mundo. É uma arte um tanto distinta das outras, talvez mais conhecidas. A filosofia da tipografia contrasta com a filosofia de outras artes.
A tipografia é uma arte reverente e ligada a tradições. É uma arte que primariamente serve. Trás um senso de responsabilidade – responsabilidade com o texto, com o autor e o leitor. Boa tipografia é aquela que melhor auxilia a obra a dizer o que pretende dizer, tendo em mente as intenções do autor e as expectativas do leitor.
Por isso que a tipografia não pode ser feita do zero. Existem certas tradições que funcionam como códigos, e que guiam a leitura. Por exemplo, o fato de que lemos (em português) da esqueda para a direita, de cima para baixo. Ou ainda, mais sutilmente, que esperamos que novos parágrafos tenham a sua primeira linha indentada. Não é muito fácil fugir dessas tradições e chegar num resultado melhor – o que difere muita da história de outras artes.
Como Jan Tschichold coloca:
O trabalho de um designer de livro difere essencialmente do de um artista gráfico. Este está buscando constatemente novos meios de expressão, levado ao extremo pelo desejo de ter um “estilo pessoal”. Um designer de livro deve ser um servidor leal e fiel da palavra impressa. É sua tarefa criar um modo de apresentação cuja forma não ofusque o conteúdo e nem seja indulgente com ele. […] O objetivo do artista gráfico é a auto-expressão, ao passo qe o designer do livro responsável, consciente de sua obrigação, despoja-se dessa ambição. O design de livro não é campo para aqueles que desejam “inventar o estilo de hoje” ou criar algo “novo”. […] Ser “novo” e surpreendente é a meta dos publicitários. (Tschichold 2007, 31)
Essa dicotomia – entre a filosofia “tradicional” da tipografia e a filosofia “inovativa” de outras artes – é aplicável não só no mundo das artes gráficas. Alias, acredito que se aplique ao mundo da tecnologia da informação.
Isso porque muitos dos esforços que existem hoje em desenvolvimento de tecnologia da informação incorporam um certo estilo de rejeição a tudo que veio antes. Seja a pesquisa em inteligência artificial}, em blockchains e tecnologias distribuídas1, ou em alguns rincões do desenvolvimento de software (mais a seguir). É interessante ter em mente, como coloca Tschichold, que “destruir alguma coisa velha e substituí-la por alguma coisa nova, esperando que ela se firme, só faz sentido se, primeiro, houver necessidade disso e, segundo, se o novo artifício for melhor que o antigo” (Tschichold 2007, 136).
É claro que a tipografia não é estática. Afinal, muitas coisa mudou nos últimos séculos, desde a prensa de Gutenberg até a tipografia digital. Mas, “embora não seja imune à mudança”, a tipografia “é basicamente imune ao progresso” (Bringhurst 2018, sec. 9.6). Bringhurst elabora essa ideia de que a tipografia pode deve ser preservada, o que significa olhar ao mesmo tempo para frente e para trás:
A tipografia é um ofício antigo e uma velha profissão, bem como uma fonteira tecnológica permanente. É também uma espécie de custódia. O léxico e as letras do alfabeto de um povo – cromossomos e genes da cultura letrada – ficam sob os cuidados do tipógrafo. Preservar o sistema significa bem mais do que meramente comprar as fontes mais novas lançadas peas fundições digitais ou as últimas atualizações dos programas de composição tipográfica. […] Preservar o sistema significa estar aberto às surpresas e às dádivas do futuro, mas também significa manter o futuro em contato com o passado.
Essa ideia de “preservar o sistema” é as vezes ignorada, quando se trata de inovação. Lembrei de tudo isso quando li um outro texto, não relacionado, entitulado Git is already federated & decentralized [Git já é federado & descentralizado]. Git, sendo um software livre, feito especificamente para que várias pessoas possam colaborar de forma organizada em um projeto – e considerando que trabalha com cópias locais de arquivos –, é o tipo de programa ideal para descentralização.
Há muita gente que acredita que o Git é, de fato, centralizado. Isso veio a tona na época da compra do GitHub pela Microsoft, quando começou-se a discutir a ideia de que se deveria descentralizar o git, apresentando mirabolantes novas tecnologias e soluções para chegar a isso. O problema: git já é descentralizado (DeVault 2018).
Sim, é verdade que muita gente tem uma experiência centralizada com o git, usando plataformas como o GitHub. Mas isso não significa que a tecnologia seja essencialmente centralizada. Como DeVault (2018) descreve, “git já é federado e descentralizado”, usando listas de distribuição de email ao invés de uma plataforma central.
E é interessante pensar que essa tecnologia não é nova, nem de longe. Isso significa, entre outras coisas, que é muito melhor estabelecida e conhecida.“Não só email é melhor, mas também é mais fácil de implementar. Ferramentas de programação para email já são muito maduras” (DeVault 2018).
Então, se já existe uma solução para o problema do git centralizado, porque inventar uma nova? A pura vontade de algo novo e brilhante não compensa, porque tecnologias novas tendem a ser menos compatíveis com as que já usamos, e envolvem toda uma carga de trabalho para desenvolver ferramentas. Lembremos: “destruir alguma coisa velha e substituí-la por alguma coisa nova […] só faz sentido […] se o novo artifício for melhor que o antigo.”
Meu ponto não é defender que devemos nos apegar ao passado, ou rejeitar todo tipo de inovação. Longe disso. Mesmo dentro da tipografia, não seria viável que ainda a praticássemos como no século XV, com prensas manuais e tipos fundidos em metal. Mas ainda assim, há muito que se aproveitar nas tecnologias do passado. Não quero argumentar que resistamos a todo tipo de mudança e que sigamos cegamente as palavras dos que vieram antes. Ao contrário, quero um espirito crítico, que pondere o que preservar e o que inovar. Acredito nessa filosofia, em que inovar “ significa estar aberto às surpresas e às dádivas do futuro, mas também significa manter o futuro em contato com o passado.”
Referências
Bringhurst, Robert. 2018. Elementos Do Estilo Tipográfico (Versão 4.0). Ubu Editora.
DeVault, Drew. 2018. “Git Is Already Federated & Decentralized.” July 23. https://drewdevault.com/2018/07/23/Git-is-already-distributed.html.
Marcus, Gary. 2018. “Why Robot Brains Need Symbols. Nautilus.” December 6. http://nautil.us/issue/67/reboot/why-robot-brains-need-symbols.
Tschichold, Jan. 2007. A Forma Do Livro: Ensaios Sobre Tipografia E Estética Do Livro. Translated by José Laurênio de Melo. Ateliê Editorial.
Basta olhar para os tantos casos em que alguém quer aplicar blockchain numa situação em que uma simples base de dados bastaria↩︎